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Uma Ética para a Medicina pós-humana

22-02-2021

Ana Elisabete Ferreira, André Dias Pereira, "Uma Ética para a Medicina Pós-Humana". In Responsabilidade Civil & Medicina. São Paulo, Brasil: Editora Focus, 2020.


1.      Video killed the radio star

"...They took the credit for your second symphony/ Rewritten by machine on new technology (...)/ Video killed the radio star/ Pictures came and broke your heart..."[1]. Música, literatura e cinema, expressões da imanência humana, têm ilustrado de forma histriónica e casualmente acertada as dificuldades de adaptação dos seres humanos às revelações tecnológicas - também elas produto da alma humana e do livre desenvolvimento da nossa personalidade - não sem consequências, por vezes graves, na sedimentação de um pensamento objetivo e razoável vocacionado para o futuro. O futuro, sendo a direção única e inevitável de todas as coisas, é simultaneamente um inconhecível e um dever: inconhecível, porque toda a conjetura a seu respeito se baseia forçosamente numa perspetiva fraturada das coisas, onde o futuro em si mesmo está inevitavelmente ausente; um dever, porque a sua inevitabilidade se impõe e importa um compromisso inilidível. Como o pensamento valorativo não tem nem deve ter obrigações de utilidade e aplicabilidade estrita, o futuro é uma empresa de pensamento deliciosa e inesgotável, que não deixa de se apresentar como uma obrigação quase missionária - pensar sobre o futuro, ainda que erradamente, é necessário e alguém tem de o fazer.

O presente artigo, porém, nada arriscará sobre o futuro da medicina, focando-se somente no presente - que é o mesmo que dizer, já no passado.

Não é de hoje que o caráter sinfónico intrínseco da medicina vem sendo denunciado: a tão propalada passagem da medicina como arte à medicina como técnica atravessou séculos até aqui. Já ninguém crê, nem admite, o médico como feiticeiro ou o tratamento como magia. A pauta da medicina é hoje a da rastreabilidade e o acaso é uma variável cada vez mais desprezada, quer porque o pensamento teórico sobre a cura se tornou profundamente positivista, quer porque o cidadão autónomo e medianamente informado interiorizou perfeitamente que quem o trata não lhe está a fazer um favor. A personalização e a centralização no doente, nas suas várias vertentes, mais não são do que manifestações extremas da pauta da rastreabilidade que rege a sinfonia atual. As máquinas, sem surpresa, são o instrumento fundamental de um toque rastreável, e os humanos, em particular os médicos e os doentes, colocaram-nas no centro de tudo, mal se permitindo tomar quaisquer decisões relevantes sem a sua mediação. Há muito que a relação médico-doente não é uma relação a dois, porque o fundamental dessa relação de cuidado - a confiança - já tem a mediação das máquinas (de registo, de auxílio, de rastreio, de diagnóstico, etc.) há muito tempo e em quase 100% das intervenções, minor ou major. Portanto, e como dizíamos, tudo isto é presente e não futuro.


[1] "Video Killed The Radio Star", (Canção de The Buggles), composta por Trevor Horn, Geoff Downes, Bruce Woolley em 1980 no Reino Unido.Além dos títulos, as secções de imagens fazem um ótimo trabalho ao dividir o conteúdo nos lugares certos. As secções principais do seu blog podem ser separadas pelas imagens que correspondem ao tema que está a abordar.

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