Sapiens, o animal doméstico do Neandertal
"Um dos maiores paleontólogos do mundo e um dos mais premiados escritores juntaram-se para nos contar a melhor história de todas: a da existência."
Em "A Vida Contada por um Sapiens a um Neandertal" (Editorial Presença, 2022, trad. P. Vieira), Arsuaga e Millás contam o seu percurso conjunto por locais onde a história da humanidade se foi escrevendo. Com humor inteligente e uma dose adequada de provocação ao leitor, o livro é um excelente exemplo de boa comunicação de ciência.
E para os interessados nestas coisas, traz de novo - ainda que subrepticiamente - a velha questão da fulcralidade da compaixão e do cuidado mútuo na evolução das várias espécies do género «homo».
No início, numa pequena horda humana, era a força muscular que decidia quem tinha a posse das coisas e quem fazia prevalecer a sua vontade. O que nos levou da violência bruta e da subjugação até um estado de potencial justiça e equidade foi, em primeiro lugar, o reconhecimento de que à força superior de um indivíduo se poderia contrapor, com sucesso, a união de vários indivíduos mais fracos. A consciência da fragilidade individual, auto e hetero reconhecida por cada sujeito, potenciou a noção de que a comunidade poderia afirmar-se como algo que ultrapassa a mera soma das suas partes, superando, de modo sinérgico, aquelas fragilidades.
E aquilo que a antropologia hodierna nos diz com inegável clareza é que o ser humano detém um substrato emocional característico onde é possível perceber que a cooperação e o cuidado mútuo são os alicerces de todas as tipologias de relação, designadamente aquelas de onde brotam deveres, como são as relações tipicamente jurídicas.
A antropologia e a arqueologia contemporâneas têm perguntado insistentemente pela origem do nosso comportamento moral, a partir de evidências de comportamento compassivo. O crânio de Dmanisi sem dentes descrito por Lordkipanidze e outros, em 2005, na Revista Nature, como um crânio, do género «homo arcaico» (homo erectus georgicus) com cerca de um milhão e setecentos e setenta mil anos, descoberto na Georgia, isento de dentição é a prova da implicação de estratégias de subsistência alternativas. O hominídeo a quem pertenceu o crânio que vimos apenas sobreviveu, porque foi cuidado – o que, tendo em conta uma dieta exclusivamente composta por alimentos crus, pressupõe a própria hétero mastigação para que fosse alimentado.
E podíamos, através de fósseis, trazer muitos exemplos de comportamento compassivo nos humanos arcaicos e pré-civilizacionais. Deixo só mais dois:
- Em 2009, foi descoberto na Sima de los Huesos (Espanha), o crânio «SH14», que integra um esqueleto de «homo heidelbergensis» feminina, que terá vivido há mais de quinhentos mil anos com uma grave anomalia craniana, que dada a sua extensão e profundidade, sugere uma gravíssima e incapacitante oligofrenia. Apesar disso, não terá sido rejeitada pelo grupo, uma vez que sobreviveu até aos 5 a 8 anos de idade. A sua sobrevivência terá implicado que fosse alimentada por outros hominídeos, transportada por outros e protegida de predadores, permanentemente.
- Os esqueletos adultos «Romito 2» de Calabria, e os vários esqueletos de neandertal descobertos em La Ferrassie, apresentando, no primeiro caso sinais de duarfismo (espinha bífida) ou doença autossómica recessiva, e no segundo caso, fraturas infantis graves e não recuperadas, sugerem profundas limitações nas atividades da vida diária, e incapacidade quase total de locomoção.
Apesar disso, estes antepassados de há 500 000 e 100 000 anos atrás, não foram rejeitados pelo grupo; foram alimentados, transportados às costas, protegidos de predadores, cuidados e vigiados durante todo o dia e toda a noite, porque só isso terá permitido que tenham alcançado a idade adulta.
São apenas amostras de como o comportamento compassivo e altruísta está longe de ser uma construção cultural do sapiens. Na verdade, há hoje boas razões para crer que o sentir-se responsável está umbilicalmente ligado a um conjunto de emoções da responsabilidade, com uma forte componente biológica. As emoções estão na origem da consciência e da perceção das prioridades. As emoções primárias, diretamente relacionadas com a satisfação de necessidades elementares, trouxeram consigo uma primeira moralidade: a consciência da necessidade do cuidado, do afeto; a ansiedade da separação, a noção de sacrifício, as vantagens do adiamento do prazer imediato em função de um bem maior; as vantagens da partilha de recursos, a troca de favores, a caça grossa cooperativa – tudo isto foi construindo um sentido primário de justiça. Como magistralmente sintetizou Martha Nussbaum, as emoções são as nossas primeiras operações de juízo, na escolha do que são as nossas prioridades e as nossas preferências.
Terão as espécies ancestrais do género «homo» selecionado os mais dóceis? Seremos nós os selvagens menos maus; animais domésticos dos neandertais? Arsuaga diria que sim.